Uma família do Patacão

Manuel Fernandes Branha (pai), Maria José Branha do Peso (filha), Celestina Lopes Moreira (mãe) e José Manuel Moreira Branha (filho) eram uma das muitas famílias pescadoras que viveram nas casas dos Avieiros. Manuel e Celestina desceram o rio Tejo ainda pequenos devido à profissão dos pais, que se foram estabelecendo, juntamente com outras famílias, ao longo das margens do mesmo.

As casas dos Avieiros, como são denominadas, são casas de madeira que foram construídas nas margens deste rio, em cima de pilares para que pudessem ficar acima do nível da água nas épocas de cheias, épocas em que a água subia muito acima das margens do rio e inundava os campos. Na vila de Alpiarça, as poucas casas deste género que ainda existem podem ser encontradas pela zona do Patacão, mas, a maioria, já está num estado avançado de degradação.
Celestina Moreira lembra-se, claramente, do tempo em que viveu da pesca “Antes de casar, vivia com os meus pais numa barraca, e quando casei fui morar cinco anos num barco. Era quarto, cozinha, sala, tudo dentro de um barco. Até arranjar dinheiro para construir uma barraca para viver. O meu filho ainda viveu no barco, em pequenino, a minha filha é que não”. Este barco era casa e trabalho num só, com um fogareiro que fingia ser cozinha, e uma proa tapada que fingia ser quarto. “Às vezes, tínhamos um fogareirozinho a petróleo, outras vezes era um latão cortado ao meio para fazer lume, com a panela lá dentro”.
Mas Celestina não estava o dia inteiro no barco “Todos os dias vinha a Alpiarça, com a canastra de peixe à cabeça, e o filho nos braços, para vir vender o peixe no mercado de cá. E quando sobrava algum, ia pelas portas tentar vender o resto. Hoje, os médicos mandam-nos andar para emagrecer. Eu, na altura, andava uma hora todos os dias para vir trabalhar”, conta entre risos. A pesca não dava trabalho para todo o ano com a assiduidade necessária para manter a família. Celestina conta que “No inverno vivíamos da pesca, mas no verão íamos trabalhar para as searas de tomate e melão. Quando, depois viemos viver para Alpiarça, passámos a viver só da agricultura. E ainda dizem que isto está mau… mau estava no nosso tempo, no nosso tempo é que estava muito mau…”.
José Branha, o filho mais velho do casal, explicou: “Morámos no barco até eles [os pais] conseguirem arranjar algum dinheirito e um terreno que foi cedido pela Hidráulica do Tejo para construir a barraca para onde fomos viver depois. Eu ainda me lembro de dormir debaixo da proa do barco, que era tapada”. José ainda se recorda bem do caminho que fazia diariamente para ir à escola “Quando eu andava na escola, que era na Lagoalva de Cima, ia todos os dias a pé para a escola. Ia e voltava.” E nos tempos livres, ajudava os pais no trabalho. Maria do Peso, a filha mais nova, conta “Eu já não vivi no barco, mas também ia todos os dias a pé para a escola. Fazia aqueles sete quilómetros por dia, três e meio para lá e outros três e meio para cá. E tínhamos chocolate quente todos os dias na escola da Lagoalva, que eles ofereciam sempre uma cafeteirazinha”.


José veio viver definitivamente para a vila de Alpiarça com 21 anos, quando casou, em 1980, mas os pais continuaram a viver nas casas dos Avieiros até ao ano de 1982. Manuel tinha 50 anos e Celestina 44, quando uma cheia de maiores proporções que o habitual os obrigou a procurar abrigo mais longe do rio, durante um período de tempo alargado. Após esta cheia, e com o filho a residir em Alpiarça, tomaram a decisão de mudar de morada, definitivamente. Maria ainda se lembra da mudança “Eu vim com eles. O meu irmão veio quando casou, em 80, e depois eles vieram em janeiro ou fevereiro de 82. Antes disso, vinha cá, às vezes, e ficava em casa do meu irmão, mas só vim mesmo viver para cá quando os meus pais vieram, tinha eu 12 anos”. Mas quando lhe perguntámos se ainda se lembra de lá viver, Maria diz que se lembra perfeitamente “Lembro-me que, no fim do banho, o secador do cabelo do meu irmão era ir com o pai dar uma volta de mota para cima e outra para baixo no Tapadão”. Esta frase deu abertura para o irmão brincar com a situação e dizer, entre risos, “Até se lembra de ir a espojar-se atrás da carroça quando era para vir a Alpiarça”. Questionada sobre o que José queria dizer com aquilo, explica “Eu morava lá. Só saía de lá para ir para a Lagoalva, para a escola. Portanto, eu passava a vida toda lá. Ela [a mãe] vinha ao sábado aviar-se, era como se chamava na altura, aviar-se à praça, e eu, como estava sempre lá, gostava de vir passear um bocadinho cá. Como ela não queria trazer-me, então eu despia-me toda, e ia a chorar e a correr atrás da carroça porque queria vir”, conta Maria. Celestina acrescenta “Fartava-se de chorar, a correr atrás da carroça, despida, como quem diz «Tu agora voltas para trás e vens-me vestir e levas-me»”. Maria diz que era uma reação normal porque vivia no patacão e não saía de lá, por isso acha normal que, em criança, quisesse ir passear à vila.
Manuel Branha não queria mudar de casa, gostava demasiado do seu trabalho para deixar a pesca, mas, com a migração da população pescadora e a escassez crescente de trabalho, teve de se conformar em aceitar trabalhos mais estáveis que a família encontrou na vila, ficando, assim, mais perto do filho, da nora, e do neto que já tinham na altura.
José contou-nos, com humor, que o pai costumava dizer “Só vou para Alpiarça quando tiver de passar para lá dois quilómetros”, referindo que só abandonava o Tejo quando já não estivesse vivo. Mas a vida quis que toda a família e, eventualmente, toda a população do Patacão tivesse de abandonar as “barracas” dos Avieiros por casas mais modernas dentro do concelho alpiarcense. É devido a essa migração que existe uma zona em Alpiarça apelidada de “Bairro dos Pescadores”, na Rua do Pinhal da Torre, por muitas dessas famílias terem estabelecido morada nessa área. Apesar disso, a distância não conseguiu apagar a relação que Manuel e Celestina tinham com o Tejo e, mesmo já estando a morar em Alpiarça, o patriarca da família construiu uma versão mais pequena do barco em que tinham ambos vivido depois de casar, para ir pescar com a esposa – tarefa que antes era o “ganha-pão” da família, passou a ser uma atividade de lazer.
Hoje em dia, já existem menos de 10 destas casas – onde antigamente existiam dezenas – e, embora noutras regiões tenham sido recuperadas e preservadas, isso não aconteceu na nossa vila: as poucas casas que ainda restam ao concelho de Alpiarça encontram-se em muito mau estado “A nossa barraca já não existe, nem temos fotografias dela. Havia lá um salgueiro que foi crescendo à volta da casa, e os ramos foram tombando para cima dela. No fim, como ninguém tomou conta das casas, várias caíram, a nossa caiu mesmo por causa desse salgueiro. É uma pena que se perca aquela história…” explica José que, tal como a maioria da restante população dos Avieiros, nutre um sentimento de nostalgia pelo que, em tempos, foi o local onde viveu. A irmã também nos explicou que as coisas podiam ter sido diferentes “Na altura, se têm lá metido luz e água, acontecia como no Escaroupim. Só que as pessoas começaram a vir embora. Uns casavam, vinham para cá, etc., e desapareceu tudo. Se, na altura, em 75, eles têm lá posto água e luz, muitas pessoas tinham feito lá casa, porque tinham lá terrenos, as famílias iam casando e iam ficando lá, e hoje era uma aldeiazita.” Celestina diz, com tristeza, que “Eles já nem o tapadão limpam. Já nem dá para lá passar, aquilo está tudo cheio de silvas.”
Na conclusão, é uma tristeza partilhada por esta família e por toda a população de Alpiarça. Tristeza ao ver desaparecer, lentamente, um pedaço de história alpiarcense que representa um modo de vida que já foi perdido, mas que, por enquanto, ainda pode dar testemunho. Pelo menos, enquanto ainda houver uma ou outra destas casas que consigam sobreviver, a muito custo, às intempéries e se vão mantendo de pé. Isso, e alguém com uma boa memória que nos vá contando como lá se fazia vida do rio.