Sandra Valença, a artista que pinta “mistérios”

Não ocorre palavra que defina tão bem a arte abstrata como o título da exposição da artista plástica brasileira, Sandra Valença: MISTÉRIOS! São 17 as peças que compõem esta obra e podem ser desvendadas pelos mais audazes na galeria da Casa-Museu até ao final deste ano.

Comecemos pelo princípio dos princípios. De onde é natural a Sandra?
Eu sou de Maringá, no sul do Brasil. As pessoas aqui brincam muito comigo por causa do inverno mas esquecem-se que no Brasil também neva… Por acaso na minha terra neva [risos]. O Brasil é muito associado ao calor, mas, na verdade, é um país de extremos.

Antes de chegarmos às questões da pintura, contextualize-nos: qual é a sua área profissional?
Eu sou arquiteta urbanista, graduei-me através da Universidade Federal do Brasil, depois vim para a Europa e passei nas provas para doutoramento em arquitetura, na universidade em Lisboa. Comecei a mexer com pintura quando estava em Paris. Todo o mundo se encanta com Paris, mas Paris não foi o meu encanto enquanto arquiteta. Achei uma cidade absolutamente voltada para a finalidade económica e isso fez com que, para mim, perdesse o encanto que eu esperava daquela cidade. Já que as minhas expectativas de encantamento ficaram defraudadas, comecei a ver Paris pelas cores que veste e aquilo que eu fazia por brincadeira tornou-se profissão, que é a pintura.

Falou-me em Lisboa, Paris… É uma pessoa muito viajada?
Um bocadinho, se formos a tirar pela média da população. Eu surpreendi-me um pouco quando cheguei a Portugal – mas nos outros países também notei isso – e vi que o europeu viaja pouco. Surpreendi-me que, eu, enquanto brasileira, possa conhecer mais de Portugal que muitos portugueses. Comecei a minha inserção na Europa pela Alemanha, especificamente por Colónia, porque tenho lá amigos. Na verdade, vim para o continente europeu para passar um período de 20 dias e gostei tanto do que vi que esse período acabou por virar férias de dois anos, sempre de mochila nas costas, a viajar de lugar para lugar: Alemanha, Holanda, França e estive quase seis meses na Grã-Bretanha.

Ou seja, viveu o sonho de qualquer estudante durante dois anos…
Sim, só que já velhota [risos]. Mas também sei que com 20 anos não veria as belezas que vi. Acho que com 20 anos não tinha maturidade emocional para me encantar com o que eu me encantei aos quarenta. Conheci praticamente toda a Europa pelo Norte.

Acaba por transpor para as suas telas as experiências que vai absorvendo nas suas viagens?
Sim. As minhas emoções pautam a minha obra, quer sejam de alegria ou de tristeza, mas tento sempre transportar-me para um momento específico de uma viagem ou paisagem. Não existem momentos bons e maus, apenas momentos de aprendizagem em que você deixa de estar na sua zona de conforto para passar a estar numa zona desconfortável.

A pintura pode ser uma terapia. Concorda?
Ah, sim! Eu já matei muita gente nas minhas telas [risos]! E que acabou por ficar belíssimo. Por exemplo, o meu amigo fadista, Manuel Coelho, dizia que a minha obra “está com muita luz” e isso é uma fase. Já houve pessoas que disseram precisamente o contrário – são fases.

É possível viver da pintura em Portugal?
Não, em Portugal ainda não é possível. Existe um mercado muito fechado. No Brasil, eu dei-me muito bem na arquitetura: fui lá, mostrei um trabalho diferenciado, de qualidade, sério, que otimizava custos e recursos governamentais – sempre gostei de trabalhar com coisas públicas porque gosto de trabalhar para a sociedade, em vez de trabalhar para particulares. No caso dos particulares, as pessoas querem pagar um Fiat 147 mas esperam que lhe entreguemos um Mercedes; então se é para trabalhar por um Fiat 147 eu trabalho na área social, dá-me mais prazer. Mas eu preciso de dinheiro; não consigo produzir, manter um atelier e comprar material de qualidade sem recursos. Em Portugal ainda é um bocado complicado, mas pronto, temos mercados aqui muito próximos.

Em que países as suas obras já estiveram expostas?
Tenho peças expostas na Alemanha, Suíça, Brasil, Espanha, Grã-Bretanha e, claro, Portugal.

Qual é o tempo médio de produção de uma obra?
[risos] Ui, depende do humor. Depende da obra que é. Esta, por exemplo, que está exposta em Alpiarça, composta por 17 peças, leva em média três meses. As peças maiores foram as que me deram um bocado mais de trabalho e me deixaram em pânico. Podem ser feitas em três meses, mas não trabalho somente seis horas por dia; na verdade, são 20 horas por dia de trabalho: é acordar e dormir sobre as telas. Tenho que esperar pelos processos, tempo de secagem, seleção e não pinto só a quantidade que vem para o museu porque não sei se o resultado final vai ficar harmonioso na coleção. Mas se eu tivesse de escolher um período para trabalhar com mais harmonia, seriam seis meses.

A sua pintura é abstrata. Quando é que considera uma peça acabada?
[risos] Igualzinho a um projeto de arquitetura: você abandona porque senão nunca mais termina! Eu sou perfeccionista, tem de chegar a um ponto em que eu digo “ou eu largo ou é a arte que me larga”. Houve duas obras que me deixaram plenamente satisfeita no final, que são os dois painéis grandes expostos no museu; olhei para elas e disse tal e qual como um espanhol “me encanta!”. Na verdade eu prefiro pintar grandes painéis, estou mais livre, mais solta, consigo expressar melhor as minhas emoções.

Que materiais usa nas suas pinturas?
Nas telas trabalho em linho ou algodão, normalmente peço madeira certificada, tenho sempre esse cuidado. As madeiras têm de ser ambientalmente certificadas por vários motivos: primeiro – pelo desmatamento; segundo – para não haver o risco de as madeiras cederem com o tempo. Eu trabalho com tintas acrílicas, não trabalho com óleos porque tenho alergia. Trabalho também com massas de moldar porque em algumas peças gosto de fazer relevos em gessos acrílicos e sou eu mesma que faço as misturas.

Pratica alguma espécie de ritual de preparação antes de começar a pintar?
Agora sim, eu estou num local muito “bacana”, no centro da cidade, ao lado do shopping, mas é um local mágico. O meu ritual… não posso pintar com estes cabelos compridos soltos, então eu ponho uma touca de dormir [risos] para prender o cabelo, visto um macacão e um avental e ponho o som no volume máximo, não ouço mais nada dentro do atelier. Há momentos que estou inspirada para Strauss, Beethoven, outros para o samba ou o tango argentino, depende do dia.

Tem por hábito atribuir nomes às suas telas?
A esta, por acaso, eu dei mas não costumo. Porquê? Eu acho que o nome sugere um caminho de leitura e isso é um crime. É por isso que eu pinto abstrato, se é para sugerir um caminho de leitura eu vou pintar o figurativo, não deu trabalho ao leitor nem ao observador. Eu acho que quem completa a obra abstrata é o observador, portanto é a sua vivência, experimentação, sensação e o seu gosto estético que vai finalizar a obra.

O que é que achou da Casa dos Patudos?
Eu acho encantador, acho o resgate histórico fantástico. Acho que a ideia de ter uma música própria para fazer a visita acaba por nos transportar na história, é como se fôssemos inseridos naquele contexto histórico. É um lugar que vale a pena ser visitado, uma história que vale a pena ser lida. Confesso que me dediquei pouco à história local mas foi mesmo por falta de tempo. Mas, pelo menos, procurei entender o contexto histórico das figuras emblemáticas, no caso do Museu de Alpiarça e também do Museu da Golegã, que pertenceu à família Relvas, para vivenciar melhor o espaço. Eu, enquanto arquiteta, faço isto e aconselho os visitantes a fazerem o mesmo porque a perceção vai, com certeza, ser outra.