Entrevista a Rui Gaspar: 32 anos ao serviço da Biblioteca Municipal

Um livro é um amigo. Com ele nunca se está só.

Almeida Garrett dizia que, com um livro, se podia viajar pelo mundo…à roda do quarto!

Fomos visitar os “amigos” na Casa dos Livros de Alpiarça – a Biblioteca Municipal Drº Hermínio Duarte Paciência.

Esta sexta-feira, dia 23 de abril, Dia Mundial do Livro, a Biblioteca de Alpiarça comemora o seu 32º Aniversário. Estivemos à conversa com Rui Gaspar, coordenador da Biblioteca, que aos 58 anos continua com o mesmo espírito dinamizador de há 32 anos. O construtor da “árvore das palavras” ( que esteve exposta no Pavilhão do Conhecimento na Expo) move-se pela paixão dos mistérios da leitura. Uma vida entre livros, Rui Gaspar fala-nos da forma como a Biblioteca se repensou para cumprir a sua missão de proximidade no período Covid e como a nova era digital não mata o livro mas pode ser um aliado privilegiado na promoção da leitura e do conhecimento.

Durante meses as pessoas viram-se numa situação de confinamento quase absoluto. Foi ou não o livro um bom amigo durante este período?

Sem dúvida. E este foi um grande desafio para a nossa Biblioteca Municipal e também para todas as outras do país. Obrigados a fechar a 11 de março por imposição legal, logo depois percebemos que era importante, e possível, continuar com os nossos amigos leitores, através não só do livro mas de um conjunto de outras ferramentas que temos habitualmente disponíveis e que fazem parte do “combate à nova aliteracia”.

Nós já tínhamos um projeto – Biblioteca ao seu Encontro, que tinha sido apresentado na Alpiagra em 2019, que tem como objetivo levar os livros (cd’s, dvd’s) para fora da Biblioteca, levá-los até aos leitores, mais afastados da Vila, aos locais do concelho Frade de Baixo, Frade de Cima e Casalinho. Com o confinamento, repensámos o projeto e levamos os livros a casa das pessoas e efetivamente, o livro foi um elemento afetivo, catalisador durante este período. E veja, tivemos 10 vezes menos utilizadores mas a requisição de livros teve uma outra expressão, completamente diferente. Foram feitos muitos empréstimos. Tivemos um caso interessante de um neto que estava em Londres e requisitava os livros para nós irmos levar a casa da avó.

A Gouxaria, não?

Nesta primeira fase, só poderíamos ter este serviço num local onde o município tivesse um posto de atendimento. Também os Águias nos possibilitaram as instalações aos sábados e domingos. O Bar D. Dion também se disponibilizou para ser outro ponto de atendimento mas devido às regras impostas pelo confinamento, não foi possível concretizar.

E já que falamos em avós, os mais velhos também merecem a atenção da Biblioteca.

Sim, temos este projeto piloto – “Peça-nos o que deseja ler, ver ou Ouvir” de colaboração com as IPSS’s que fazem acompanhamento domiciliário. Ou seja, os utentes das IPSS’s que estão em casa, mais isolados e que recebem apoio domiciliário receberam um panfleto nosso que foi entregue pelas instituições que os apoiam. Depois podem ter acesso aos nossos livros através dos funcionários das IPSS’s que os requisitam, o que mais aconteceu, ou são as instituições que nos fazem chegar os pedidos e nós entregamos.  

Tendo por base este princípio, alargámos este projeto aos mais pequenos através da equipa de CLDS 4G de Alpiarça que leva os livros às crianças com mais dificuldades e que estão sinalizadas.

São dois projetos piloto que surgiram a partir do projeto-mãe que já existia – Biblioteca ao Seu Encontro e que foram redimensionados para este período de confinamento.

O trabalho de uma biblioteca, hoje, não é só para quem “lê” mas também deve ser direcionado para quem está a dar os primeiros passos na leitura, um incentivo à leitura.

Nós temos um projeto de dimensão de leitura para crianças no pré-escolar, crianças até aos 6 anos – Ler antes de Ler. As crianças do Centro Escolar vinham uma vez por mês à Biblioteca, através da Fundação José Relvas, da EB1 de Alpiarça (pré-escolar, uma sala de cada vez), a Abel Avelino do 1º Ciclo também. Depois tínhamos duas atividades regulares com as crianças e as IPSS’s, da Fundação José Relvas e da ARPICA – Conto-vos um Conto, uma partilha de contos tradicionais, sessões quer eram gravadas como recolha de material tradicional e os Filmes de Outrora, realizado também uma vez por mês. Momentos de grande partilha e de convívio.

Durante o confinamento o “Conto-vos um Conto” manteve-se…

Sim, mantivemos essa proximidade com recurso às tecnologias. Quando começou o confinamento pensamos – “O que vamos fazer?”. Num primeiro momento lançamos o projeto pioneiro  – Quarentena Lúdica. Foi uma experiência inacreditável… a 18 de março de 2020, peguei no meu telemóvel e a Vera começa a contar a história como fazíamos normalmente mas no Facebook em direto . A Paula e a Vera, alternadamente, contavam as histórias às segundas, quartas e sextas e eu filmava com o meu telemóvel. Mas era importante fazer isto porque, de repente, as crianças estavam fechadas em casa e os pais não sabiam como ocupar o seu tempo. Um esforço enorme, concluímos agora. Depois, via Skype, fazemos semanalmente com as IPSS’s do concelho. Até hoje.

Acabámos por montar um pequeno estúdio, se assim se pode chamar, com uma web câmara, um projetor, uma mesa de mistura. Este iniciativa foi fundamental e teve um impacto que nem imaginávamos. Depois alargámos o projeto ao Ler Antes de Ler com o Centro Infantil  da Fundação José Relvas. Mas tanto a Fundação José Relvas como a ARPICA não tinham meios técnicos e nós demos o apoio para montar o equipamento. Falei com uns e outros e conseguiu-se. O computador que tinha em casa emprestei, a televisão que não era usada aqui foi para a sala de aula, o router foi o município que arranjou. Durante esse período muita interação se fez a partir do jardim! Curiosamente, fizemos mais atividades em 2020 do que em 2019! Estivemos abertos 240 dias durante 2019 mas em 2020, embora tivéssemos mais tempo fechados, fizemos mais atividades… virtualmente! Somos poucos, poucos meios mas fizemos o nosso melhor e melhorámos porque fomos aprendendo! E foi mesmo com esforço nosso. A Paula tem problemas de saúde e mesmo a partir de casa fazia os contos com o filho a gravar! Tinha mesmo um mini estúdio em casa. 

Quantos funcionários tem a Biblioteca?

Neste momento somos 4 pessoas no ativo: eu, a Vera, a Paula e agora o José Manuel. A Maria Eugénia tem estado de baixa.

O que aconteceu à Comunidade de Leitores?

Ahhh…parou. Tentámos sempre ativá-la digitalmente mas entre os membros da comunidade havia dificuldade em interagir desta forma.

Estamos a participar com as Sugestões de Leitura, em parceria com a Biblioteca de Loures, uma modalidade que permite que os membros nos enviem sugestões de livros, sugestões essas que são colocadas na rede social da Biblioteca. Havemos de regressar ao presencial. Assim como já voltámos ás exposições, como é o caso da exposição de livros miniatura de João Lizardo.

Além destas parcerias com bibliotecas de municípios de outros distritos, a Biblioteca de Alpiarça faz parte de uma rede de bibliotecas muito específica. Que rede é esta?

Sim. O projeto a que se refere começou há 3 anos – a Rede Intermunicipal das Bibliotecas da Lezíria do Tejo – RIBLT, aliás a Biblioteca de Alpiarça, como a de Almeirim, estiveram na génese deste projeto, um intercâmbio variado entre as várias bibliotecas da Lezíria. Neste momento temos um projeto – BiblioTic’s , que prevê que as bibliotecas possam oferecer respostas no âmbito das “literacias digitais”. Por exemplo, como aceder à internet, fazer uma caixa de correio, fazer uma pesquisa, ligar à internet, etc, como a robótica, programação … já aqui temos o equipamento porque o Bibliotic’s era para ser lançado em 2020 mas o covid alterou os planos. Este é um projeto de cerca de190 mil euros, no total, e que abrange as 11 bibliotecas da rede. As bibliotecas recebem formação e nós replicamos essa formação junto dos nossos utilizadores. É um projeto para dois anos. A RIBLT foi a primeira a participar no projeto da PADES – Programa de Apoio ao Desenvolvimento dos Serviços das Bibliotecas, um programa lançado e patrocinado pela Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB). Vamos ter um espaço aqui, destinado à formação digital e vamos ter 10 cursos nas várias áreas, por exemplo, robótica, youtube, preenchimento de uma folha de IRS, segurança digital, etc. Agora já temos possibilidade de dar esta formação. Temos computadores, tabelas, drones, óculos de realidade virtual, impressora 3D, kits de eletrónica, etc. A formação dos nossos técnicos é assegurada pela DGLAB a 100% através de uma empresa Happy Code e a Associação Nacional de Professores de Informática. Os municípios comparticipam no restante a 50%.

Um projeto pioneiro nesta área que vai preencher as necessidades dos nossos utilizadores. E é importante que seja na Biblioteca porque é uma forma de chamar a atenção para o papel da Biblioteca na comunidade e, indiretamente, de se aproximar o livro das pessoas. Manter as bibliotecas vivas e os livros.

Nós temos uma grande expectativa na rede Intermunicipal. Recentemente, no Dia da Poesia, todas as bibliotecas da Rede fizeram um vídeo…há a Feira do Autor que foi interrompida por causa da situação pandémica. Nós agora é que percebemos o que se perdeu antes da Rede. Há intercâmbio: as Bibliotecas de Rio Maior, Salvaterra de Magos já vieram cá fazer atividades e nós fomos lá. Há partilha de experiências e diversificação de atividades. Uma novidade: vamos ter o Press Reader, uma plataforma online que permite ter acesso a 7000 publicações. Já foi aprovada pela CIMLT e está na fase de implementação.  

O mundo virtual pode ajudar o livro…

Foi o que fizemos durante o confinamento, nos projetos que já referi, e de forma interativa com as crianças, por exemplo, Ler Antes de Ler ou Conto-vos um Conto em que reviam os amigos.

Mas tem de ser “q.b.”! Reduzimos o calendário de algumas das nossas atividades porque, entretanto, a oferta passou a ser muita e a saturação era evidente. Passamos a ter um conto à quarta-feira, por exemplo, em vez de ser em 3 dias. 

A Biblioteca também tem intervenção na Escola Virtual. Como entrou nesta rede e como funciona?

Quando nos apercebemos que com o digital chegávamos a todo o lado, vimos aqui uma possibilidade de resolver um problema: com o confinamento tínhamos deixado de prestar o apoio escolar, o apoio curricular. Colocámos alguns recursos, links online no nosso site (foi um passaporte para o exterior) mas era insuficiente. Surgiu-nos então a possibilidade de adquirirmos uma licença da Escola Virtual da Porto Editora. Do 1º ao 12º ano oferecemos 15 licenças por um tempo de utilização que pode ser requisitado pelos utilizadores. Nós enviamos a senha e em casa podem aceder à Escola Virtual gratuitamente. Já agora, todos os serviços da biblioteca são gratuitos, excepto as fotocópias.

E as impressões Take Away?

Com o novo confinamento agora, os utilizadores que tinham acesso aos nossos serviços perguntavam-nos como podiam imprimir ou fazer uma pesquisa. Então, aproveitando a janela 24 da devolução de livros, pusemos um teclado do lado de fora da janela, o écrã por dentro e as pessoas, sem entrar na biblioteca, faziam consultas, imprimiam e pela caixa do correio recebiam as impressões. Um serviço inovador de fácil concretização!

E o futuro hoje da Biblioteca, como será?

Para já no dia 23, Dia do Livro e o 32º Aniversário da Biblioteca, vamos ter várias atividades. O João Lizardo vai estar em Lisboa e vai fazer uma partilha online com as crianças de como se fazem livros miniatura, uma iniciativa da rede de bibliotecas de Alpiarça que conta com o apoio da Professora Bibliotecária da Biblioteca Escolar. 

No Auditório Externo vai haver uma sessão de contos com Elsa Serra às 10h, à noite para adultos,  e às 11h uma animação de leitura com Paulo Condessa.

De forma mais geral, vamos continuar a animação de leitura, no virtual, até haver a possibilidade de ser presencial (esperemos que lá para o final do ano já se possa!) junto dos mais novos e dos mais velhos, temos o Bibliotic’s, regressaremos com a Comunidade de Leitores. Retomar as atividades, é isso. Vamos fazer uma mudança no espaço, renovar alguns equipamentos, renovar o catálogo, continuar a proporcionar à nossa comunidade uma Biblioteca que seja um espaço de inclusão, de diferenciação e que seja uma forma de quebrar assimetrias no acesso à informação. E um espaço de convívio e de partilha.

A biblioteca faz hoje 32 anos! Viu-a nascer? Que momentos considera que foram mais importantes na história da Biblioteca?

Foi em 1989 que um colega, Francisco Cristóvão, e eu lançámos a biblioteca. Eu era um técnico. Só muito mais tarde é que passei a coordenador.

A biblioteca começou porque havia uma grande vontade de um serviço público de acesso à leitura. Procurámos um espaço e a 14 de abril abrimos no Centro da Juventude. Foi importante depois fazer entrar a Biblioteca na rede. Um marco também foi o facto de sermos pioneiros na leitura para crianças, o que aconteceu logo no ano seguinte, e apesar da biblioteca ocupar apenas duas salas, sempre se conseguiu fazer várias atividades.

Depois houve a necessidade de procurar um novo espaço porque aquele não era o sítio ideal. Ficava num 1º andar, o que dificultava o acesso a pessoas com mobilidade reduzida, no fim da Vila, por baixo da GNR. Foi este o grande desafio. Assinámos o contrato em 2001 e foi inaugurada em 2007. Um espaço magnífico com excelentes condições que permitem cumprir as funções que lhe estão destinadas com dignidade. Agora o desafio é criar e desenvolver atividades. Claro que há momentos de altos e baixos; com mais ou menos recursos, com mais ou menos pessoal mas nunca se deixa de “fazer”. É um caminho que se trilha.

Já que estamos na casa dos livros, nas “Mil e uma Noites” há uma lâmpada que se esfrega de onde sai um génio dos desejos… Peço-lhe que esfregue a lâmpada de Aladino e peça um ou mais desejos. 

(Risos) Nós ambicionamos sempre mais recursos! Que a biblioteca tivesse mais livros, mais DVD’s, mais CD’s e que pudesse oferecer à comunidade os muitos serviços que esta merece. Da parte do município tem havido esse esforço e tem-se procurado, sempre que possível, o financiamento ao nosso espaço. Claro que há os custos com os nossos vencimentos e a manutenção da biblioteca. Mas agora vamos renovar o parque informático que já tem 14 anos. Tentamos sempre ter as novidades em termos de livros, o que é uma luta. Gostava de ter mais pessoal com formação na área porque somos poucos. Queremos sempre fazer mais e melhor porque o fundamental é servir as pessoas, a comunidade; é para ela que existimos.