Entrevista à APAV: o apoio às vítimas no distrito e o papel de proximidade das Equipas Móveis nos concelhos de Almeirim e Alpiarça

Os dados do Ministério da Administração Interna sobre criminalidade relativos ao ano de 2018 no distrito de Santarém, referem uma descida relativa a 2017 de -5,8% casos de criminalidade: dos 12.903 passam a 12.151 ( Almeirim com 549 participações e Alpiarça com 161). Dos crimes violentos e graves, o distrito teve uma descida de 11,6%, ou seja, dos 353 casos em 2017, em 2018 foram registados 312 crimes. Destes, os mais participados têm a ver com crimes contra pessoas e aqui a descida foi mais fraca: menos 0,8% e ocupam 24,4% dos crimes, antecedidos apenas pelos crimes contra o património (51,1%). E neste ponto falamos de crimes não só no âmbito da violência doméstica mas de todas as formas de agressão física ou/e psicológica a pessoas e a lista vai sendo extensa.

Da estatística para as pessoas. Como trata o Estado as vítimas destes crimes? Saber quem ajuda as vítimas de crime e que alternativas existem para se começar de novo. Fomos até ao GAV – Gabinete de Apoio à Vítima da APAV, em Santarém e estivémos à conversa com a gestora Carmen Ludovino (CL) e Gustavo Duarte (GD), psicólogo e assessor técnico no GAV.

Recentemente a APAV celebrou um protocolo com o município de Alpiarça para a criação de um polo de atendimento da EMAVLT – Equipa Móvel da Lezíria do Tejo em Alpiarça, nos mesmos moldes do de Almeirim, por exemplo. Porquê ?

CL – Este protocolo surge no âmbito da CIMLT – Comunidade Intermunicipal da Lezíria do Tejo . Neste momento quase todos os municípios da Comunidade da Lezíria do Tejo já assinaram o protocolo. Só falta Coruche. O objetivo da Equipa Móvel é de dar uma resposta de proximidade aos municípios. O GAV -Gabinete de Apoio à Vítima de Santarém tem dado resposta aos municípios de Comunidade da Lezíria (Médio Tejo também) durante 13 anos. Acontecia que muitas das pessoas que nos contactavam, tinham dificuldade em chegar até nós e nós também não nos conseguíamos deslocar sempre que éramos solicitados. E já que falamos de Alpiarça, já atendemos vítimas provenientes de Alpiarça em Santarém, Almeirim e até na Chamusca. Nunca deixamos de atender ninguém mas de facto, a proximidade facilita o atendimento e o apoio. Com esta equipa móvel, a APAV vai estar disponível uma vez por semana em cada um dos municípios protocolados, numa sala cedida pelo município onde uma equipa multidisciplinar composta por mim, pelo Dr. Gustavo Duarte e pela Dra. Marta faz os atendimentos às vítimas. Em Alpiarça, assinamos recentemente o protocolo mas falta confirmar o dia e a hora para entrarmos em funcionamento. Em princípio deve ficar estabelecida a quarta-feira das 09h30 às 12h30 numa sala no antigo lavadouro da vila. Em Almeirim, a EMAVLT funciona na Rua Dionísio Saraiva nº11 – 1º andar, às segundas das 9H30 às12H30. 

Como é que chegam estas vítimas à APAV?

 CL – Ou são as próprias que nos contactam diretamente, ou através de amigos e familiares ou através de encaminhamentos. Existe o número gratuito 116 00 6. Há um técnico interlocutor da área social que pertence ao município que identifica e referencia situações que chegam através do Centro de Saúde, das forças de Segurança, da Segurança Social ou de qualquer outro organismo da rede social. Apoiamos vítimas de qualquer crime com enquadramento no nosso Código Penal, na vertente jurídica, psicológica e social. Estamos a falar não só de violência doméstica mas de todos os tipos de vitimação, o que é muito mais abrangente, estamos a falar de vítimas de roubo, extorsão, o chamado crime patrimonial, assédio, bullying, são vítimas que precisavam de ter aconselhamento acerca dos seus direitos, de indemnizações, apoio psicológico, por exemplo, no chamado stress pós-traumático. E não só para as vítimas como para os seus familiares.

Quando se fala da APAV, as pessoas associam-na de imediato à violência doméstica.

CL – Sim, porque em 30 anos de existência foram as vítimas de violência doméstica que mais recorreram aos nosso apoio. E acabamos por nos especializar no tipo de vitimação mais solicitada. Temos mais pedidos de ajuda para vítimas de crimes de violência doméstica do que de furto, por exemplo. Qualquer pessoa vítima de crime, seja qual for, pode beneficiar do nosso apoio.

Dos crimes contra as pessoas, qual é o mais preocupante?

CL –  Bom, a violência doméstica continua a aumentar, e isso é preocupante. Para nós técnicos é a característica do próprio crime. Um crime que ocorre dentro das próprias paredes, em que os agentes, a vítima e o agressor têm sentimentos ambivalentes, quero dizer, são criados expectativas de mudanças de comportamentos, reconciliações, e muitas vezes por mais respostas que haja, estas podem não ser controladas, digamos assim, porque dependem da própria vítima. 

GD – Todas as situações são preocupantes. O que acontece é que a intervenção pode ter de ser mais específica, devido ao risco. No caso da violência doméstica, temos tendência a vê-la na conjugalidade mas não é só isso. Temos o caso dos idosos. A violência contra os idosos é grave porque eles acabam por ser reféns dos seus próprios cuidadores. Normalmente, são vizinhos ou amigos que fazem as denúncias porque os idosos negam os atos, muitas vezes perpetrados por filhos e assim dificulta-se a intervenção. Quem denuncia os filhos, não é? Temos o caso de violência contra crianças e jovens, exercida no seio da família. A particularidade destas situações carece de uma resposta mais específica. Vou dar o exemplo, nós temos duas casas abrigo para mulheres e crianças vítimas de violência doméstica. Mas para os idosos já não temos este tipo de resposta. Para os homens, vítimas de violência doméstica também já temos uma casa abrigo, que não tínhamos.

CL – A questão dos idosos é preocupante. Não há instituições a nível nacional com a resposta de casa abrigo para idosos. E é uma resposta necessária há muito tempo. Até porque há muitas denúncias de maus tratos a idosos. As pessoas estão mais sensíveis a este tipo de crime e denunciam mais. São um grupo de vítimas bastante vulnerável. Falamos de crimes como maus tratos, negligência, extorsão. E a questão depois prende-se com a produção da prova. Muitas vezes, a GNR chega ao local e os idosos desvalorizam as ações dos filhos. E não apresentam queixa. 

E Bullying?

CL – Sempre houve. E não há escola que não tenha casos. Agora o que há é um refinamento deste crime porque se serve das novas tecnologias, das redes sociais para exercer violência sobre os pares. Assumiu-se um problema agora que sempre houve em todas as escolas. Atendemos também vítimas de Bullying. O Bullying é um crime que tem de ser trabalhado em várias vertentes.

Vamos aos dados da APAV sobre vítimas de crime em geral: em 2018 aumentaram em 31% (46 371) os atendimentos face a 2017. Em Almeirim, houve 23 casos em 2017, e 24 em 2018. Alpiarça teve 3 casos em 2017 e 11 em 2018. Estes casos seguem com queixa ou fica-se pelo caminho?

CL – Estes dados não refletem os números nacionais. São só os atendimentos da APAV. E sim, muitos destes casos não chegam à queixa. Tivemos um caso recente, de uma vítima que foi encaminhada por nós para a PSP para apresentar queixa mas depois não avançou com o processo. Não querem formalizar queixas. Mas continua a ser apoiada por nós.

Mas porque desistem? No perfil das vítimas, referem nas vossas estatísticas que são 80% mulheres com idades entre os 35 a 44 anos, casadas, com filhos, empregadas e com ensino superior – não são mulheres dependentes nem sem formação. Como se explica este comportamento?

 CL – O que faz as vítimas permanecerem nesta situação é a dependência emocional. Embora ainda haja casos de dependência económica, a permanência numa situação continuada, falamos de anos de violência, a dependência é sobretudo emocional.

GD – Acrescentar ainda o que estas vítimas ainda pensam: o que vão dizer os familiares, a comunidade, há ainda a condicionante dos filhos, o facto de serem culpabilizadas pela sociedade, o medo.  Muitas vezes, até a própria vítima não se reconhece como vítima e não interpreta os comportamentos como um crime. E não é o que se ouve dizer :” elas gostam de apanhar”. Não, ninguém gosta de ser maltratado. Ninguém está numa situação de violência porque gosta.

CL – A violência tem fases: a tensão, o ataque e o apaziguamento, “a lua-de-mel”. E aqui o agressor tem a estratégia de pedir desculpa e de dizer que vai mudar e…até muda mas por um curto espaço de tempo porque depois volta ao mesmo. A vítima agarra-se a uma falsa ideia de mudança e atribui a culpa a factores externos, como o álcool, o desemprego, etc. Não há um perfil da vítima; há características.

GD – E depois há a considerar o agressor ou agressora e as suas estratégias para manter a vítima nesta situação. E isso piora a situação da vítima: fica cada vez mais isolada, mais deprimida e mais incapaz de se libertar desta situação e procurar apoio. O agressor cria estas estratégias para tornar a vítima dependente. Isolamento (da família, dos amigos), controlo e dependência – são as palavras chave neste processo de violência doméstica.

Como é que uma vítima sai disto?

CL – É com um clique! Às vezes há um fator externo que empurra para a mudança. Os filhos, por exemplo, podem fazer o confronto.

GD – Note-se que começa com pequenos gestos de violência, por exemplo, querer saber onde está, com quem se dá, o que se veste, etc.. Às vezes começa no namoro este controlo. Vemos isto nos jovens e a aceitação deste comportamento pelas vítimas. 

CL – É atroz nos jovens! As redes sociais estão cheias destas perseguições cujo objetivo é controlar a vítima. 

Mas afinal há ou não mais violência ou as vítimas estão a acordar?

GD – Esta situação não é de agora. Actualmente a comunicação social, as campanhas da APAV, têm sensibilizado para a violência. Ou seja, aumentou o número de pedidos de ajuda mas não podemos afirmar que aumentou a violência porque esteve muito tempo escondida. Esta é a grande dúvida que temos. Até porque recebemos casos de pessoas vítimas de violência doméstica durante 30 ou 40 anos. Há mais respostas para estes casos e as pessoas sabem. Não temos certezas.

Há casos graves em que as vítimas têm de fugir?

CL – Sim, há. Basta haver um caso para eu achar que é muito! Embora cada vez mais haja medidas que possam ser aplicadas em 72h, como a teleassistência, a inibição de contacto. Ainda assim, a inibição de contacto aplicada depois do agressor ser ouvido pelo juiz, não resolve e temos de fazer com que “a vítima desapareça”. Embora se retirem as armas, por exemplo, ainda há o elevado grau de risco. Há casos, também, em que as vítimas não querem ir.

E as vítimas é que têm de mudar de vida, “desaparecer”. 

CL – A saída é a última resposta e é para casos de risco e quando achamos que as medidas existentes não salvaguardam a integridade física da vítima. A casa de abrigo é para proteção. Esta é uma situação que é bem pensada e está sujeita a reavaliações.

Num caso destes, a vítima consegue reiniciar uma nova vida. Mas o agressor, após cumprida uma pena, voltará a encontrar outra vítima. Inicia-se novo processo com custos para o Estado. O sistema não consegue pensar em resolver o problema a partir do comportamento do agressor? 

CL – Há um longo trabalho a fazer no campo da reabilitação do agressor. Porque enquanto andarmos aqui a trabalhar e a apoiar as vítimas e não houver agressores a serem trabalhados, vai continuar a haver sempre vítimas. Os agressores são conscientes dos seus atos. Os agressores são maus. Não há desculpas como a bebida. A bebida é um desinibidor; mais nada. E isto as pessoas têm de perceber. Há trabalho a fazer nas medidas das penas, nos estabelecimentos prisionais mas as medidas de pena melhoraram muito. Aqui há uns anos atrás as medidas eram a apresentação na esquadra da polícia de 15 em 15 dias e o agressor continuava a viver com a vítima. Os agressores não se assumem como agressor. Aliás, transferem a culpa para a vítima e para o exterior. O pouco trabalho que se faz sobre o agressor é escasso. E é preciso investir nesta área.  

No que diz respeito ao apoio à vítima, o que falta fazer?

CL – Muito já foi feito. Contudo, há oito compromissos que falharam e que precisam de ser cumpridos: a criação de um Programa Nacional de Prevenção e Segurança de Proximidade, a reforma da Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes e do enquadramento jurídico das indemnizações às vítimas pelo autor do crime e pelo estado, em especial às situações de violência, ampliação das responsabilidades e meios do Centro Nacional de Cibersegurança em articulação com o Ministério da Defesa, a criação de uma rede de espaços seguros para visitas assistidas e entrega de crianças e jovens no âmbito dos regimes de responsabilidades parentais, adaptar as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens para que possam proteger pessoas em situações de risco, avaliar a aplicação dos instrumentos de justiça restaurativa e alargar a sua utilização, tornando-a obrigatória na fase preliminar na justiça de menores, simplificar a linguagem nos processos para ser acessível a todos e estarem explícitas as referências a disposições legais e melhorar a qualidade do acesso ao sistema de apoio judiciário.