2ª Melhor Fotógrafa do Mundo é Portuguesa, vive em Alpiarça – Entrevista a Ana Filipa Scarpa

Ana Filipa Scarpa ganhou no passado mês de março, o 2º prémio de fotografia na categoria Preto e Branco de um dos mais conceituados prémios de fotografia do mundo – o HIPA – Hamdan International Photography Award que teve como júri as maiores personalidades ligadas ao universo da fotografia.
A monumental Ópera do Dubai consagrou uma mulher, num mundo árabe, e atribuiu-lhe a pesada estatueta – “a lente de ouro”- para memória futura: uma mulher ficará para sempre no top dos maiores nomes da fotografia.
Mal se falou em Portugal do assunto. Mas sim, foi ganho por uma portuguesa que “veste a camisola de Alpiarça”, como gosta de dizer.

Concursos em Portugal e no mundo inteiro contam-se cerca de 100 participações em que ganha primeiros, segundos ou terceiros prémios ou ainda menções honrosas. Natureza, arquitetura, engenharia ou simplesmente arte são os motes para uma boa fotografia. Já publicou um livro e a Nasa transportou-a para universos desconhecidos. Já foi destaque em revistas da especialidade.

59 anos de uma vida que começou tarde para a fotografia, “mas ainda a tempo”. “A culpa é dos filhos”, diz, “por causa deles comecei a fotografar”. Uma mulher com jovialidade no riso e na conversa que flui serena, crítica e com uma boa dose de humor; um olhar curioso, aquele olhar escondido por detrás da lente que capta no instante todas as emoções e percepções do mundo.


O Alpiarcense quis saber quem é esta mulher, o que pensa sobre o panorama da fotografia, os seus projetos. Este é o registo da conversa que tivemos no passado dia 15 de maio com Ana Filipa Scarpa, tendo como cenário a Casa dos Patudos. A Casa de José Relvas que também tem ligações à fotografia, conforme a explicação de Nuno Prates, conservador do Museu, que nos mostrou as fotografias tiradas pelo proprietário e que serviram de ponto de partida para a construção de alguns painéis de azulejos da Casa.

A poucos dias da cerimónia “prometida” de casamento, aqui deixamos mais uma história de vida, em jeito de homenagem ao marido, um italiano por quem Ana “se deixou morrer d’amores”, o seu grande apoio e incentivador e que a tem acompanhado nesta sua viagem pelo mundo da fotografia.

ENTREVISTA A ANA FILIPA SCARPA

Afinal é ou não de Alpiarça?
Sou alpiarcense porque visto a Camisola de Alpiarça. Nasci em Lisboa, mas tenho família ribatejana. O meu avô nasceu em Vila Franca de Xira. Era veterinário e andava de terra em terra. Depois acabou por ficar por Grândola. Eu cheguei a uma altura da minha vida e quis fugir de Lisboa. Comecei à procura de casa. Não conhecia Alpiarça. Tinha cá vindo há uns anos atrás com o Vitor Lopes a propósito de uma maratona fotográfica e percorri toda esta zona para fotografar. Era só o que conhecia. Quando andámos à procura de casa fizemos um perímetro de busca com limite em Santarém. Vimos a casa que habitamos agora e deu-se um clique. Vimos outras mas esta era especial e acabamos por a adquirir, faz agora um ano. Por isso digo que sou alpiarcense. E quero participar ativamente na vida da terra: quero fazer parte do Coro, faço a Hidroginástica aqui, faço aqui as compras, tenho já muitos amigos. As pessoas da terra são fantásticas, são francas. Fazia-me falta isto! Aqui não se paga para sair de casa. Não há filas para os serviços públicos. Não se paga para parar o carro. É um sossego.

Desde sempre que teve esta vocação para a fotografia?

Não. Isto começou com uma brincadeira há 15 anos. Eu digo sempre que fui autodidata e só mais tarde fiz o curso da Nikon. A minha formação académica é Sociologia. Nem gostei muito do curso (risos)! Comecei a tirar fotografias aos meus filhos e as pessoas diziam que eram uns retratos lindos…claro que só podia pois os meus filhos são lindos, não era preciso um grande esforço! Acho que era o meu “approach” que fazia a diferença! Achei piada e comecei a pensar a fotografia. O meu marido ofereceu-me, então, uma máquina analógica. Saía caro: eu, autodidata, gastava muito dinheiro em revelações só para experimentar ideias que ia tendo e para aprender técnicas. Sou a maior crítica do meu trabalho e as “más” fotografias faziam com que eu fosse procurar respostas em revistas da especialidade, em artigos, em livros. Na altura não havia internet mas hoje, eu estou viciada nestas novas tecnologias e corro todos os tutoriais. Mas nem tudo vale a pena. É preciso ter espírito crítico. O primeiro prémio que ganhei foi promovido pelo Carrefour, na altura do Europeu de Futebol em 2004, com uma fotografia da minha filha a segurar na Bandeira Portuguesa, na piscina. O Zé (o marido) oferece-me a D70 da Nikon que tinha uma promoção para um concurso ibérico e eu enviei uma fotografia de um passarinho a mergulhar. Entre espanhóis e portugueses… ganhei eu!

Tem uma enorme quantidade de prémios que conquistou em concursos de fotografia nacionais e internacionais (para lá dos 80!). É o facto de ganhar que a incentiva a concorrer?

É ,mas sempre foi importante concorrer porque sendo inicialmente autodidata, esta é uma maneira de me “certificar”. Não tendo formação, digamos académica, na área, esta era uma forma de as pessoas verem que eu até tinha algum jeito. São os prémios que ganho que fazem a minha certificação. Entre ganhar 5 prémios ou 50 há uma diferença. E essa quantidade de prémios que diz, são a minha referência. Chamavam-me a “papa-concursos” e às vezes, na brincadeira, perguntavam-me -“Vais concorrer ao tal concurso? Se vais, já não vale a pena eu concorrer!” Cada vez que concorro, é um teste para eu melhorar. O meu objetivo é sempre melhorar. Eu tenho concursos que ganho anualmente. A participação é sob anonimato, portanto, o júri não sabe de quem é a foto. Mas isso é de grande responsabilidade para mim porque tenho sempre que me suplantar: no ano seguinte, tenho de fazer melhor. Isso é um grande desafio para mim. Além de que hoje em dia há muito bons fotógrafos a concorrer.

E qual é o seu objetivo agora?
Ah…ganhar o 1º prémio no Dubai! Tenho de me superar! Vou ter 900 anos e vou tentar sempre o 1º prémio! (risos) De bengala, de cadeirinhas de rodas empurrada pelo Zé mas vou continuar a tentar tirar a foto do 1º prémio do Dubai…

Uma foto “sai” à primeira?
Não. Às vezes nem à décima (risos!)… O meu marido que me acompanha sempre, sabe logo pela minha cara quando depois de tirar a foto olho para o monitor para ver o resultado…às vezes sai “aquela” e fica estampado na minha cara! O meu marido diz logo: “esta vai ganhar o prémio!”.

Vamos a este grande prémio do HIPA. Esta é uma grande distinção?

Se é…só o facto de ser seleccionada como finalista já é bom! E só duas mulheres chegaram à final. O tema não era fácil – a Esperança. Em 300 mil fotografias, só 100 foram apuradas. Ganhar o prémio foi…”ir á lua e ficar por lá!” Ainda não desci…(risos). Nunca houve um português a chegar lá… foi agora e logo uma mulher!

Mas não foi muito falado em Portugal. Só obtivemos informação através de uma agência de notícias internacional…
Não foi falado. Foram vocês e uma outra publicação que me ligou logo às 6 da manhã. Talvez por ser mulher, não sei, não me ligaram nenhuma! E estavam lá jornalistas portugueses. Fui mal tratada em Portugal. Até pelo jornal com o qual colaborava! Nunca houve um português a ganhar este prémio. É um mérito para o país!

Foi “um bico d’obra” para os árabes darem o 2º prémio a uma mulher?
… (Risos)…Andei sempre acompanhada pelo meu marido. Veja que no Dubai há táxis cor-de-rosa para as mulheres que andam sozinhas, conduzidos por mulheres porque um homem não pode transportar uma mulher sozinha. Há algumas (poucas) mudanças no mundo árabe, no que se refere ao papel da mulher na sociedade. Mas repare que este problema não é só nos países árabes! Este prémio foi também um teste a mim própria: tive um viagem de avião de 8 horas e eu tenho pavor a andar de avião e tive de andar de elevador …sofro de claustrofobia! Tinham de retirar toda a gente do elevador para eu ir com o Zé! Mas, voltando à questão das mulheres, em Portugal, elas fazem muito um trabalho de estúdio: fotografam grávidas, bebés, não se dedicando tanto à fotografia de exterior. Nem todas as mulheres tem um marido como eu, que está comigo a 100% – acompanha-me em tudo e por isso é fácil, para mim, escolher ambientes de risco ou perigosos. Eu faço fotografias de interiores, por exemplo casamentos, mas nunca concorro com essas fotos.

Diria que o seu tema favorito para fotografar é a natureza…
Sim, sim! Gosto da natureza, gosto muito da água por causa do reflexo que me fascina.

E é repetente no Small Bridges American Society Of Civil Engineers nos Estados Unidos.
Sim, sou repetente nesse e noutros. Já concorri a esse prémio este ano.

Gosta de reflexos da água. Isso quer dizer que prefere o exterior e nada de cenários interiores?
Não, adoro retrato de estúdio mas vou confessar uma coisa…”não tenho paciência para bebés” porque não estou a criar, estou só a retratar.

O seu percurso da fotografia já a levou também até ao mundo do jornalismo. A fotografia na notícia também é arte ou não se pode sair do “real”?
Pode. Uma reportagem das cheias na Ribeira de Santarém que fiz são arte: o enquadramento faz com que as pessoas, mesmo vendo a catástrofe, sintam a “beleza” na fotografia. Se calhar não é a catástrofe mas aquilo que eu vejo na catástrofe. Até porque as pessoas que vivem ali acham “aquilo” normal. Houve um senhor que me foi passear de canoa, para eu ver bem. E só queria que eu comesse pão com manteiga para não passar fome… (risos)! Se falarmos nas “Fakes Photos”, não pode haver manipulação porque nós entregamos o ficheiro e a fotografia original. Vê-se logo. Que muitas vezes se “mexe” na fotografia, sim, usam-se filtros, faz-se o Photoshop mas se isso servir para chamar a atenção para uma situação grave, cumpre-se uma função. Estou-me a lembrar do caso da criança síria que foi encontrada morta na água. Essa fotografia gerou polémica porque mexeram na criança, portanto, alteraram o enquadramento. Não sei até que ponto se pode condenar esta atitude porque serviu para fazer uma chamada de atenção para o drama dos refugiados. Aliás, houve um outro caso de uma foto num concurso em que colocaram uma criança num outro contexto. Mas a qualidade e o objetivo da fotografia também interessam.

Foi uma fotografia de natureza que chamou a atenção da NASA…
É verdade. Foi uma fotografia que tirei em Vila Franca. Estava a acabar uma sessão fotográfica no campo. Arrumava os equipamentos quando olho para trás e vejo uma espécie de remoinho, vindo do nada. Pego nas coisas, e começo a fotografar um “ballet” em torno dos cavalos…parecia um tornado mas de bichos, insectos ou o que era. Uma amiga disse para eu colocar a foto num site. E fiz. Tive 15 mil “Likes”. Passado uns dias começo a receber pedidos de entrevista. Perguntaram-me se eu tinha tido medo. Não tive. Aquilo suscitou-me a curiosidade. Um jornal espanhol até disse que eu era espanhola…(risos)! E a fotografia do fenómeno chamou a atenção da NASA.

E fez um livro “A ver Lisboa”…
Sim, fotografias das 45 freguesias de Lisboa ao pormenor. Um livro de edição de autor que esgotou logo e que não voltei a editar. Foi feito por volta de 2016 para um cliente que precisava de internacionalizar a cidade. Fotografias de casas, de pessoas, de ambientes. Foram 4 meses de trabalho muito intenso, de manhã à noite, e ainda hoje faço fisioterapia por causa de uma tendinite que fiz na altura. Fui turista na minha própria cidade: fotografei coisas de Lisboa que nunca tinha dado por elas. Nunca tinha “olhado” para Lisboa. Mais depressa conhecemos outra cidade do mundo…É um erro que todos fazemos: não olhamos o nosso local.

Mas tem mais um projecto para um livro?
Tenho. Também sobre Lisboa mas as editoras não têm interesse em publicar porque é um livro direccionado para o turista que quer mesmo conhecer a cidade. Está todo pronto. Cada fotografia tem indicação do local e da hora da captação (a luz é importante). Um dia, se tiver dinheiro, publico.

Também faz fotografia comercial. O que gosta mesmo de fotografar?
Sim, é do que vivo! Faço fotografia para publicidade, fotografia de interiores para empresas, hotéis. E tenho a fotografia para exposições, como as que já fiz em Ílhavo e na Guarda. Gosto muito de arquitetura! Eu estou aqui a ver neste cenário dos Patudos, estes arcos, os azulejos e já estou a pensar que quero fotografar isto… (risos)! É mais fácil perguntar o que não gosto de fotografar: grávidas e bebés!

Mas gosta de retrato…
Muito …mas não é a mesma coisa! Olhe, eu não fotografo as festas de família! Não gosto do copo, da garrafa, gosto do produto final. Sou chata nisto porque começo a afastar tudo das mesas e, às tantas, tenho a pessoa já com luzes feitas, olhe, faço um mini estúdio logo ali.

E animais? Tem um canil…
Tenho, sim. Mas também não ando a tirar fotos aos animais. Contudo, se me levarem um cão ao estúdio, faço tudo…

E é daquelas fotógrafas que só olha pela lente ou já usa os monitores para ver?
Não…Agora já uso os monitores da máquina porque eu sei logo o que quero fotografar. Basta uma. Foi uma grande evolução. Eu comprei uma máquina mais pequena mas é bem melhor porque não é tão pesada. Eu antes trabalhava com 8 kgs na mão, com lentes pesadas! Agora consigo uma qualidade de imagem espectacular com lentes fixas.

O Digital é uma evolução útil mas tirou, ou não o “glamour” do “analógico”?
Tirou glamour. Mas o digital fez com que a fotografia deixasse de ser elitista. Qualquer um tem acesso à fotografia. Antigamente é que a fotografia era só para homens, com o peso do equipamento! E as experiências saíam caras: eu gastava 2 contos por semana para revelar as fotos. Eu não tinha estúdio de revelação; mandava revelar tudo. Depois passou-se à digitalização. O meu marido ofereceu-me a D70 e aí eu já podia ver na hora os erros. O digital sai mais barato e permite que seja uma atividade muito acessível a todas as pessoas. As máquinas também têm descido de preço. E os telemóveis já têm câmaras de excelente qualidade. Também é um instrumento de trabalho para mim.

Todos podemos ser fotógrafos?
Bem, isso é outra coisa. O importante é o cérebro. Temos de conseguir transmitir o que vimos, seja “verdade ou mentira”, podemos usar filtros (eu uso) ou técnicas que cada um desenvolve mas aqui é que reside a diferença, não na máquina. Mas é preciso dizer isto: hoje as pessoas dizem que são fotógrafos porque vão tirar cursos e fazem muitos workshops mas antigamente não havia nada disto e havia grandes fotógrafos. Os grandes fotógrafos do mundo não têm cursos de fotografia. O jeito, o olho, estão no cérebro. Podemos tirar mil cursos mas se não está nada no cérebro, isto é, não há criatividade, espírito de análise, nunca se chega a fotógrafo. Eu fico às vezes espantada com a genialidade de colegas meus! E não é da máquina; é da cabeça! É como fazer uma boa sopa: posso ter os melhores ingredientes, os melhores tachos mas se for uma péssima cozinheira, a sopa sai uma porcaria! E tem de se ter paixão, claro!

Quanto tempo da sua vida ocupa com esta sua paixão?
Toda a vida. É o meu dia a dia! Desde que acordo. Se não estou a fotografar, estou a fazer edição de imagem, a ver tutoriais. No outro dia pediram-me para fotografar comidas. Andei uma semana a ver tutoriais de manhã à noite. Vi tudo, até o que não servia para nada – é preciso ter espírito crítico também para seleccionar.

O “Boom” que a fotografia tem hoje é benéfico ou pode torná-la banal?
Eu acho que é benéfico. Porque é positivo se toda a gente puder tirar fotografias. Agora deste universo nem toda a gente, poderá ser “o fotógrafo”. É como os concursos de talentos: concorrem todos mas só um é que tem mesmo talento. Até pode ser uma forma de encontrar talentos na fotografia. Veja, o Joel Santos, um dos nossos melhores fotógrafos, era economista. O Jorge Bacelar é veterinário, outro grande fotógrafo que tem retratos extraordinárias dos seus agricultores, com grandes enquadramentos. Tenho a honra de ser sua amiga. Ele concorreu ao HIPA, não ganhou mas merecia muito.

São estes os seus fotógrafos de referência?
Sim. O Joel Santos, o Jorge Bacelar, o Sebastião Salgado, o Tom Ang da Nova Zelândia.

O que quer fazer mais na vida? Há projetos?
Fotografia. Até ao fim da minha vida! Não gosto de fazer mais nada: não gosto de cozinhar (risos)! Pronto, é isto: fotografar, fotografar.
Tenho o livro que, como já referi, quero editar e vou continuar a concorrer até chegar ao 1º prémio do HIPA. Faço o meu banco de imagens e isso ocupa-me o tempo. É daqui que saem muitas das fotos que uso para os concursos. Outras vezes, tiro fotografias muito específicas para um ou outro concurso.

O que vai fazer aos 12 mil dólares do prémio?
Não sei. (risos) Tem de ser bem pensado. Ainda não tenho o dinheiro.