António Marçalo – Os pedais de ouro do ciclismo português

Natural de Sesimbra, António Marçalo é uma das nossas glórias do ciclismo. Alpiarça foi a terra que o acolheu nos anos 70 onde hoje tem o restaurante Danidoce.

Começou muito cedo no ciclismo no Sporting e depois passou para os Águias. Correu ao lado de nomes como Joaquim Agostinho, Marco Chagas e Merckx. Deixou o ciclismo cedo demais e no seu auge da carreira. Seguiu as pisadas dos sogros e durante 14 anos dedicou-se ao melão.

Ainda tentou o cicloturismo mas uma lesão na coluna afastou-o dessa ideia. Mas, ainda apaixonado pela modalidade, é o seu maior seguidor e crítico. Homem simples, dele só recolhemos elogios ao trabalho e ao esforço. Em equipas trabalha-se por todos, eis o que ouvimos do homem que fez outros ganharem os prémios. De histórias se faz a História… e das histórias de um homem se faz a História do Ciclismo em Portugal.

Diz o povo que “de pequenino se torce o pepino”. Começou cedo o gosto por pedalar?
Foi quase de pequenino mas foi já com 15 ou 16 anos que comecei a participar em corridas na terra e a ganhar. Eu trabalhava a 20 quilómetros de casa e deslocava-me de bicicleta. Entretanto, um ciclista do Sporting que lá vivia levou-me para o clube e eu comecei a ganhar e lá fiquei .

Como foi a sua estada no Sporting?
O Sporting é uma escola: tem amadores, profissionais. Mas eu tive azar assim que entrei porque tive um acidente e parti uma perna. E só tinha feito duas provas. Fiquei sem o contra relógio. Estive um ano parado mas continuei a praticar e no ano a seguir estava na Volta a Portugal, a integrar a equipa principal sem nunca ter feito corrida em lado nenhum. Foi em 1971. Nesta altura o ciclismo era um desporto que, numa escala de importância, ficava a seguir ao futebol. Hoje está em baixa.

Se estava na equipa principal ficou ao lado de nomes importantes para a glória do ciclismo português e internacional?
Sim, corri ao lado de grandes nomes como o de Joaquim Agostinho, até hoje o maior ciclista português, Leonel Miranda, Firmino Bernardino, Emiliano Dionísio, Vítor Rocha entre os outros. Quem vem de uma terra pequena e vem para este meio, só pode sentir um grande orgulho! Quem entra numa equipa com estes sprinters, com trepadores, entra para trabalhar e eu tive de trabalhar! Cheguei a andar 50 quilómetros na frente a puxar e nas serras estava lá com eles e cheguei a fazer 3 décimas na volta a Portugal! Depois fui para o Águias-Clock onde corri com o Marco Chagas, Alfredo Gouveia, Joaquim Carvalho, Alexandre Ruas e aqui fiquei dois anos, até 78. Ainda corri neste ano ao lado de Joaquim Andrade e Floriano Mendes e depois deixei o ciclismo. Tinha 28 anos, a idade boa para o ciclismo. Foi aqui , nos Águias, o clube de renome do Lima Fernandes, do José Manuel Marques, Agostinho Correia entre outros, que comecei a namorar.

Porque deixou o ciclismo?
Naquela altura estava um bocado em baixo. Fui para os Águias porque tinha a possibilidade de trabalhar na fábrica da Clock. Deixei então o ciclismo mas hoje tenho pena de ter abandonado cedo. Os ciclistas ganhavam dinheiro nas voltas e não precisávamos de trabalhar. Não era muito mas chegava e além disso tínhamos de nos preparar. Casei em 79, depois saí da fábrica e fiquei com os meus sogros e dediquei-me ao negócio do melão. Agora estou aqui no restaurante “Danidoce” que eu e a minha mulher criámos há 22 anos como pastelaria.

Tem ideia do pior troço que já pedalou?
Tenho, mas tive um amigo e colega de prova que não me deixou desistir. Era o meu primeiro ano, eu ia no pelotão mas o sofrimento era tanto que eu disse-lhe que ia desistir. Eu ia num sofrimento tão grande que fiquei para trás. E ele veio-me cá buscar atrás e levou-me para o pelotão e disse ”Tu não vais desistir”! E eu troquei o passo, fiquei no pelotão e ele ficou para trás. Passados uns 20 km, apareceu no pelotão e foi ganhar a etapa. Isto no ciclismo é assim mesmo: tem momentos muito difíceis e de repente, tudo muda.

Os ciclistas estudam estratégias para as provas?
Sim. Mas quem faz isso é quem está mesmo decidido a ganhar a volta. Mas quem trabalha para uma equipa não pode contar com isso. O ciclista sabe que tem uma serra a 50 km mas antes da serra, ele tem de ir a puxar e quando lá chega está cansado. Mas tem objetivos de chegar a determinados sítios e tem de se defender para lá chegar. Eu às vezes defendia-me e escondia-me dentro do pelotão mas o Joaquim Agostinho aparecia e dizia: “Marçalo vai lá à frente um bocadinho!”

Na época corriam na Volta já como profissionais?
Sim. Na altura só podia ser assim. Um amador para entrar nos quadros dos profissionais tinha de ter autorização de um profissional. Hoje não é assim.

Como era correr ao lado de nomes como o de Joaquim Agostinho?
O Sporting, o Joaquim Agostinho sempre trataram bem as pessoas! O Joaquim Agostinho dava valor a quem trabalhava, respeitava as pessoas… dentro do ciclismo não havia ninguém como ele e eu lidei com muitos!

Qual é o maior receio de um ciclista?
Eu costumava dizer que um ciclista é como um moço forcado: vai para a estrada como o forcado vai para os cornos do touro! São serras de 20, 30 km, muitas vezes com gelo, outras vezes com óleos nas estradas… Enfrentá-las é correr o risco de sair da estrada e andar metros pelo ar! Mas chegávamos lá acima. Nós benzíamo-nos sempre antes e não precisávamos de mais nada porque ficávamos entregues a Deus!

O ciclismo é um desporto que provoca exaustão?
O ciclismo é das modalidades que mais leva à exaustão. Um ciclista tem de estar sempre muito bem preparado. O ideal é treinar seis a sete horas por dia. No meu tempo fazíamos Lisboa /Porto direto que são cerca de 340 km. Um mês antes das provas já tínhamos de andar a fazer esses quilómetros. Antigamente as provas duravam três semanas; hoje duram uma semana. Não é uma Volta, é uma prova. Havia a Volta ao Algarve que durava uma semana e agora são dois ou três dias mas que traz muita gente porque realiza-se numa época de calor que não existe na europa. havia o prémio JN e outras provas.
Hoje em dia um atleta de competição preocupa-se com outros fatores que lhe podem melhorar o rendimento, como por exemplo, a alimentação, relaxamento, etc.

Nesses anos também se pensava nestes fatores? Quais as grandes diferenças entre a prática desta modalidade ontem e hoje?
Nós já tínhamos cuidado, por exemplo, com a alimentação. Nós comíamos quase tanto como duas ou três pessoas. Tínhamos refeições completas: a sopa, o prato de peixe, o de carne, arroz, salada… para as provas, três horas antes tínhamos de fazer as refeições. Se tínhamos provas às oito da manhã, às seis eu já comia um bife com arroz e salada porque o desgaste era muito e se apanhávamos calor ou chuva nas etapas, então… quando havia chuva com gelo as mãos ficavam hirtas na forma do guiador e era a outra mão que ajudava a “descongelar”. Hoje já não é assim porque houve uma evolução no equipamento. Bem, naquele tempo quando apareceram os capacetes, por volta dos anos 77, fizemos uma série de reuniões porque não os queríamos usar. Pesavam muito e faziam muito calor. Há muitas diferenças entre esta modalidade praticada anteriormente e a hoje; a nível do equipamento usado e nas próprias provas. Nós fazíamos duas etapas por dia; hoje fazem uma com período de descanso. Por vezes acabávamos de correr à meia-noite e no dia seguinte às nove, já estávamos a pedalar! Nós tínhamos os carros de apoio que nos faziam o transporte; hoje têm camiões que são melhores que hotéis de luxo. Têm melhores bicicletas…mas não é isso que faz as melhores médias! São as condições das estradas, o trabalho de preparação. Olhe, o Joaquim Agostinho chegou a fazer médias de 51! Tenho uma história com o Joaquim Agostinho por causa dos períodos de descanso. Nós ficávamos dois a dois nos quartos durante as Voltas. E o Joaquim Agostinho gostava muito de ficar no seu silêncio. Então, o treinador ia-me buscar ao quarto onde eu estava para eu trocar com o colega de quarto do Joaquim Agostinho.

Quem foram os grandes impulsionadores do ciclismo em Portugal?
O Sporting foi. Teve sempre escolas, teve sempre grandes equipas, o João Roque, o Joaquim Agostinho e por aí fora. O Benfica também, aliás teve o ciclista Dinis Alves que eu conheci. Depois acabou o Sporting, o Benfica e o Porto … e o ciclismo acabou. Hoje temos um Sporting muito aquém daquilo que foi e só lamento que o Benfica não volte porque esta rivalidade entre clubes dá sempre um impulso às modalidades.

Hoje em dia o ciclismo já não movimenta as massas como antigamente. Está um pouco “apagado”? O que provocou este desinteresse pela modalidade?
Houve uma grande evolução na vida das pessoas. Na época em que corri, faziam-se umas provas chamadas de “clandestinas”: eu arranjava 100 contos; convidava os ciclistas e eles vinham cá fazer a prova. E assim aparecia sempre gente nova. Isto hoje não é permitido. Além de que é preciso muito dinheiro para realizar provas. Naquele tempo havia bicicletas e motas…hoje há carros e carros. Tudo tem carro. Hoje não há a prática de pedalar por necessidade. E esta prática levava a um convívio saudável entre a juventude. Hoje os jovens querem computadores. Ninguém vai trabalhar a 20 ou 30 km de casa de bicicleta, mas eu ia. Eu e muitos. À época havia o prémio JN e muitas outras provas. Agora é que não. A Volta a Portugal é que concentra os ciclistas em Portugal. E a Volta ao Algarve.

Agora vamos falar de prémios…
Como eu trabalhava para a equipa fazia os outros ganharem. O Joaquim Agostinho ganhou três Voltas a Portugal com a minha ajuda. Ele, o Marco Chagas, etc. é que eram os homens do contra relógio Antigamente era assim: ou corríamos e trabalhávamos ou não tínhamos lugar na equipa! Nem nenhum clube nos aceitaria! Ficávamos com a carta presa e não saíamos. Mas o Joaquim Agostinho ganhava o prémio e nós ganhávamos o mesmo. Dividia por todos. Ganhei alguns prémios, sim: fui campeão nacional por duas vezes em estrada, em rampa; ganhei algumas etapas na Volta a Portugal mas, sobretudo, trabalhei muito para os meus colegas.

E dopping? Falava-se disso na altura?
Sempre existiu. Não era uma coisa do outro mundo! Nós tínhamos uma lista de medicamentos que não podíamos tomar. E entre eles estava a vulgar aspirina. Se um de nós tivesse uma dor de dentes ou de cabeça tinha de aguentar porque não se podia tomar nada! Porque acusava. As pessoas é que pensam que são “drogas” pesadas. Não, são coisas que nós usamos no dia a dia. Agora há outros produtos e técnicas que melhoram o desempenho, como as transfusões que o Armstrong fez numa Volta, mas não havia na altura nada disso. Ora nós chegámos a fazer Voltas a Portugal sem médicos! Se havia algum problema, íamos para o hospital. Contudo, eram muito rigorosos nos exames que nos faziam periodicamente.

Do que tem mais saudades?
Saudades? Deixe-me antes responder do que tenho pena de não ter feito. Tenho pena de não ter participado na Volta a França. Em 1975,com o Sporting Lejeune Sottomayor, corri ao lado de nomes como Eddy Merckx, Poulidor, Luis Ocaña, Van Impe e fiz todos os prémios internacionais que havia nesse ano: Volta à Corsega, País Basco, Luxemburgo, mas o meu nome não apareceu na lista da Volta à França. O treinador era italiano e vivia em França. O meu nome aparecia numa lista de convocados mas como eu tinha tido uma briga com um diretor, fui retirado da lista. E Regressámos a Portugal. Perdi uma grande oportunidade. Até porque eu fiz sempre parte da primeira equipa. Isso e ter deixado cedo.

Como vê o futuro do ciclismo?
Não vejo grandes alterações. Se o Benfica e o Porto voltassem, as coisas poderiam melhorar. Mas hoje vai tudo para o futebol! A França cada vez aposta mais na sua Volta! E nota-se pelas multidões que arrasta. A França vende a Volta: mostra o que é bonito, vende as imagens maravilhosas das montanhas, das paisagens! E aqui é que está o grande ciclismo: desde grandes atletas como público! Os franceses também têm uma tradição no uso de bicicleta! O que é pena porque a bicicleta é o equipamento que mais faz trabalhar o corpo. Não há melhor método para fazer manutenção do que a bicicleta.